Tradução do artigo original da revista The New Yorker, publicado a 21 de Julho de 2021. De Katherine S. Xue.
É muito provável que COVID-19 se torne endémica. De que forma é que o nosso sistema imunitário pode combatê-la?
Foi na Primavera de 1846 que o médico holandês Peter Ludwig Panum chegou às ilhas Faroe, uma cadeia vulcânica situada cerca de duzentas milhas a noroeste da Escócia. Encontrou um cenário de condições extremas, um clima impiedoso. Os oito mil habitantes das ilhas, súbditos da coroa dinamarquesa à época, passavam a maior parte do seu tempo no exterior a pescar e a pastar ovelhas, fustigados por fortes ventos vindos do mar. Tais condições não eram propriamente favoráveis a um “prolongamento da vida dos habitantes” da ilha, escreveu Panum. No entanto, apesar da escassez de cuidados médicos e de uma dieta de carne seca e por vezes rançosa, a esperança média de vida de um faroês situava-se nos 45 anos – ou seja, igualava ou superava a da Dinamarca continental. Os ilhéus beneficiavam de uma quase total ausência de doenças infeciosas; muitas doenças, incluindo a varíola e a escarlatina, raramente lá chegavam. Panum estava na ilha para estudar uma epidemia de sarampo – o primeiro surto do vírus nas ilhas Faroe num período de 65 anos.
De uma forma geral, o surto foi devastador e previsível. Em cerca de seis meses, mais de três quartos da população foi infetada, e cerca de cem pessoas morreram. Tratou-se de um surto pouco habitual, por vários motivos. Na Europa continental o sarampo era habitual nas crianças, mas poucas crianças faroesas morreram no surto. Foram os adultos que sofreram as maiores consequências. A taxa de mortalidade aumentava com a idade até aos 65 anos, e a partir daí baixava. Percebeu-se, então, que tal se devia ao facto de alguns dos habitantes mais velhos já terem sido infetados na epidemia anterior, em 1781, e estarem ainda protegidos pela imunidade adquirida décadas antes. Dentro deste grupo de “pessoas idosas”, escreveu Panum, “nem um, de acordo com o que a investigação pode apurar, foi atacado pela segunda vez.”
A investigação de Panum continua a constituir, nos dias de hoje, uma demonstração cabal de um facto assinalável: o corpo tem memória. Aprende a reconhecer os patogenos que encontra e, em alguns casos, conserva essa memória durante décadas, ou mesmo durante toda a vida. Mesmo as civilizações antigas já conheciam a memória imunitária muito antes de a conseguirem compreender; Tucídides, no seu relato da peste de Atenas, escreveu que “o mesmo homem nunca era atacado duas vezes – pelo menos não fatalmente”. Muitos de nós construímos a nossa perceção sobre o sistema imunitário com base em histórias como esta. Vemos a imunidade como um estado binário: sem ela, somos vulneráveis; com ela, estamos seguros.
No entanto, para muitos agentes patogénicos – incluindo os coronavírus – a imunidade funciona de uma forma mais complexa. A família coronavírus inclui o SARS-CoV-2, o vírus responsável pela COVID-19, assim como outros quatro coronavírus sazonais – HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-HKU1 e HCoV-NL63 – que em conjunto provocam entre 10-30% das constipações comuns. Atualmente, estes coronavírus sazonais são a causa de infeções comuns na infância, tal como o sarampo era no tempo de Panum. Contrariamente ao que acontece com o sarampo, é habitual os adultos serem re-infetados pelos coronavírus regularmente, entre intervalos de poucos anos.
Muito daquilo que sabemos sobre estas re-infeções tem origem na Common Cold Unit, um programa de investigação britânico cujos estudos sobre a transmissão e tratamento de vírus envolveram mais de oito mil voluntários humanos ao longo de quarenta e quatro anos. Num dos seus últimos estudos, publicado em 1990, catorze voluntários saudáveis foram expostos ao coronavírus sazonal 229E por via nasal. Um ano depois voltaram para receber uma segunda dose idêntica à primeira. Das nove pessoas que foram infetadas da primeira vez, seis voltaram a contrair a infeção à segunda exposição. Os cinco voluntários que escaparam ao vírus da primeira vez também foram infetados na segunda. A quantidade de re-infeções pode parecer alarmante, mas os voluntários re-infetados demonstraram menos sintomas e menor probabilidade de transmissão a terceiros. Não eram completamente imunes, mas retiveram alguma imunidade – suficientemente baixa para permitir a re-infeção, mas suficientemente forte para diminuir a potência do vírus.
Este retrato nebuloso da imunidade aos coronavírus vai marcar o nosso futuro à medida que procuramos controlar a COVID-19 nos EUA. É hoje possível afirmar que pelo menos 160 milhões de americanos adquiriram alguma forma de imunidade, seja por ter contraído o vírus, por terem sido vacinados, ou ambos. Ainda assim, é provável que o vírus tenha vindo para ficar. “Pessoalmente considero que não há qualquer hipótese de o SARS-CoV-2 ser erradicado,” – é o que considera Jesse Bloom, virologista no Fred Hutchinson Cancer Research Center. (O professor Bloom acompanhou a minha investigação relativa à evolução da gripe.) A maioria dos vírus, incluindo os quatro coronavírus sazonais, outros vírus que provocam constipações e o vírus da gripe, não foram erradicados; os cientistas consideram-nos “endémicos”, um termo que deriva da palavra grega éndēmos, que significa “nas pessoas”. Os vírus endémicos estão constantemente em circulação, tipicamente em níveis baixos mas com surtos ocasionais de maior gravidade. Como sociedade, não combatemos estes vírus com quarentenas e ordens de recolhimento; vivemos com eles.
Como será viver com o SARS-CoV-2 endémico? A resposta a esta questão vai depender largamente da força das nossas memórias imunológicas. De que forma é que o nosso corpo vai recordar o vírus ou a vacina? De que forma é que o declínio da imunidade e o crescimento de novas variantes irão afetar a nossa vulnerabilidade à re-infeção? Começamos a saber a resposta para algumas destas perguntas, e a perceber o que se poderá passar nos próximos anos.
No dia 13 de maio de 2020, um navio de pesca deixou a cidade de Seattle. Antes de embarcar, os vinte e dois membros da tripulação realizaram o teste de diagnóstico do coronavírus e o teste de anticorpos, que indica a existência de infeção anterior. Três tripulantes testaram positivo para anticorpos antes da partida; todos testaram negativo no diagnóstico do vírus. No entanto, em alto mar, um dos membros da tripulação adoeceu e testou positivo. Um navio no mar é uma ilha, e naturalmente o vírus espalhou-se rapidamente. Quando voltou à costa ao fim de dezoito dias de viagem, cento e três tripulantes testaram positivo. E, no entanto, nenhum dos três tripulantes que tinham mostrado anticorpos antes de embarcar foram infetados pela segunda vez. Em outubro de 2020, quando estes resultados foram reportados no Journal of Clinical Microbiology, não era claro que os anticorpos gerados numa primeira infeção pudessem proteger relativamente a uma segunda. O navio voltou com notícias encorajadoras.
Os anticorpos nem sempre são a primeira linha das nossas defesas. Quando as nossas células encontram um novo vírus respondem, em primeira instância, recorrendo ao chamado sistema imunitário “inato”, que ataca o início da infeção de forma rápida, antes que esta evolua e fique fora de controlo. A resposta inicial não é específica; na maior parte dos casos, ela é a mesma independentemente do agente patogénico, independentemente de ser novo ou já conhecido. Apenas alguns dias depois é que entra em ação o sistema imunitário “adaptativo”, que contém a memória imunológica. Parte desse trabalho envolve células B, responsáveis pela produção de anticorpos. O nosso corpo produz milhões de células B, sendo que cada uma delas é regulada, de forma mais ou menos aleatória, para produzir um tipo diferente de anticorpos; estes anticorpos são tão diversos que um deles irá inevitavelmente corresponder ao agente patogénico que provoca a infeção. Durante a infeção, as células B adequadas para o combate ao novo invasor recebem sinal para se multiplicarem. Os anticorpos que produzem circulam na corrente sanguínea, acoplam-se a partículas do vírus e inativam-nas.
O estudo do navio de pesca confirmou que a resposta dos anticorpos gerados numa primeira exposição ao SARS-CoV-2 é capaz de proteger contra infeções subsequentes durante um determinado período de tempo. A memória imunitária estabeleceu-se. “As células B irão, em muitos casos, persistir para o resto da vida e continuar a produzir anticorpos de forma a que o corpo se lembre daquilo a que foi exposto no passado” afirma Bloom, um dos autores do estudo. Acontece que existem vários graus de memória imunitária. Os anticorpos produzidos contra determinados vírus, tais como o do sarampo, da parotidite (papeira), da rubéola e da varíola, persistem de forma extraordinariamente estável durante várias décadas; é por causa dessa persistência que as “pessoas idosas” do estudo de Panum conseguiram resistir à doença tantos anos depois de terem sido infetados. Mas nem todas as respostas por anticorpos são tão duradouras. Em 2007 foi publicado um estudo relativo aos trabalhadores do Oregon National Primate Research Center (Centro Nacional de Investigação de Primatas do Oregon). Estes profissionais realizavam análises regularmente para verificar a sua exposição a doenças provenientes dos animais. Os investigadores descobriram que os níveis de alguns dos seus anticorpos permaneciam altos ao longo do tempo, mas os de outros decresciam. Os anticorpos contra o tétano e a difteria, duas toxinas bacterianas, caíram para metade dos seus níveis iniciais num período de dez a vinte anos.
A erosão gradual dos níveis de anticorpos no sangue pode diminuir a proteção e tornar-nos vulneráveis à re-infeção. Ainda não sabemos ao certo quanto tempo durará a resposta dos nossos anticorpos ao SARS-CoV-2. “A longo prazo, será que os anticorpos permanecem num patamar estável, que persiste durante toda a vida, ou seguem uma trajectória descendente?” questiona Bloom. Em relação ao SARS-CoV-2, especificamente, é demasiado cedo para responder a esta questão. De qualquer das formas, estudos prolongados sobre outros vírus da mesma família (os que provocam a SARS e a MERS), indicam que o nível de anticorpos diminui de forma significativa dois a três anos após a infeção. É possível que o mesmo aconteça com os anticorpos da COVID.
Declínio e desaparecimento são coisas diferentes. Mesmo que o nível de anticorpos baixe depois de atingir o pico após a infeção, continua a ser suficientemente alto para prevenir que a exposição viral se transforme em infeção, ou que a infeção progrida para doença grave. A bordo do navio de pesca, dois dos três tripulantes protegidos apresentavam níveis limitados de anticorpos. Ainda assim, o vírus não os afetou.
A memória imunitária não está apenas inscrita nos anticorpos. “Existe um conjunto de células de memória que estão à espera de serem reativadas”, relata Marion Pepper, imunologista na Universidade de Washington. Para além das células B (que produzem anticorpos), também temos células T – combatentes aguerridas, capazes de destruir até células do próprio corpo quando estas estão infetadas por um vírus. Tal como os anticorpos, a quantidade de células T vai diminuindo ao longo do tempo. No entanto, ambos iniciam o seu trabalho de forma mais rápida quando se trata de uma re-infeção. “Quando o corpo vê um vírus pela primeira vez, a resposta adaptativa demora entre cinco a sete dias”, explica Pepper. “Mas quando o vê novamente, a resposta pode demorar apenas duas a quatro horas”.
No Verão do ano passado, Pepper liderou um estudo sobre a imunidade de quinze voluntários que tinham sido infetados com COVID-19 três meses antes e desenvolvido sintomas ligeiros. Os investigadores procuraram anticorpos, mas também as ditas células de “memória”, dos tipos B e T – guardas atentos que vivem nos nossos tecidos e na corrente sanguínea, e que monitorizam o reaparecimento de agentes patogénicos específicos. Quando estas células reconhecem um velho inimigo, fazem soar o alarme, acelerando a multiplicação de células B e T específicas para aquele agente. De acordo com Pepper, as células de memória funcionam como “pequenas agulhas num palheiro”, mas mesmo assim os investigadores conseguiram encontrar algumas que eram específicas para o coronavírus, e isto ainda que os voluntários apenas tivessem manifestado sintomas ligeiros. “Tenho muita confiança no sistema imunitário”, afirma Pepper.
As várias camadas do sistema imunitário funcionam em conjunto para fortalecer a sua própria memória. Mas os vírus não são estáticos. À medida que acumulam mutações, a sua forma altera-se, e tornam-se cada vez mais difíceis de reconhecer. Os sobreviventes da pandemia da gripe espanhola de 1918 mantiveram um alto nível de anticorpos contra o vírus durante praticamente noventa anos. Mas isso não impede indivíduos adultos de contraírem o vírus da gripe aproximadamente de cinco em cinco anos – isto porque a evolução rápida do vírus da gripe garante que a cada ano existem variantes diferentes. Em média, os vírus responsáveis pela gripe sofrem seis mutações todos os anos, sendo que muitas delas alteram as proteínas que permitem a entrada e saída nas células hospedeiras. Assim, anticorpos que antes se ligavam com facilidade a um vírus deixam de ter essa capacidade na sua forma mais evoluída; o vírus pode conseguir passar despercebido a determinadas células T que antes conseguiam reconhecê-lo.
“A mesma pergunta pode ser feita em relação aos coronavírus”, diz Bloom. “Qual o papel das mudanças do vírus na sua capacidade de nos re-infetar?”. Existe cada vez mais evidência científica que sugere que a evolução viral nos torna mais vulneráveis à re-infeção por coronavírus. Investigadores do laboratório de Bloom analisaram recentemente amostras de sangue recolhidas nos anos 80 e 90; estas amostras continham anticorpos da versão sazonal do coronavírus 229E que circulava à época. Estes mesmos anticorpos falharam o reconhecimento dos descendentes do vírus que se desenvolveram entretanto. As mutações nos coronavírus acontecem de forma mais lenta do que as de outros vírus como por exemplo o HIV ou a gripe mas, no decorrer de uma ou duas décadas, podem alterar-se o suficiente para conseguir escapar à nossa memória imunitária.
Atualmente debatemo-nos com múltiplas variantes do coronavírus que são mais transmissíveis – e possivelmente mais letais – do que a estirpe original do SARS-CoV-2. Os anticorpos criados em resposta ao vírus inicial ou às vacinas atuais não são tão eficazes contra algumas destas variantes, facilitando a re-infeção. O caso de Manaus, na Amazónia brasileira, deu motivos de preocupação aos investigadores. No início de 2020 o vírus espalhou-se pela cidade sem qualquer tipo de controlo; em outubro do mesmo ano, testes à população revelaram que praticamente metade dos habitantes da cidade tinham anticorpos, o que levou vários cientistas a declarar que aquela região tinha atingido a imunidade de grupo. Mas em dezembro a cidade sofreu uma nova vaga, ainda mais grave do que a primeira, que provocou mais hospitalizações e mais mortes.
As causas desta segunda vaga foram alvo de muita especulação e, tal como quase tudo na pandemia, não têm uma explicação única. Parte da responsabilidade está no relaxamento das regras de distanciamento social durante o período de festas numa cidade que acreditava estar imune. Por outro lado, o estudo que calculou a prevalência de níveis altos de anticorpos poderá ter sobrestimado o alcance da infeção na população em geral. A variante P.1, ou Gamma, detetada pela primeira vez em Manaus no início de dezembro, também tem a sua quota parte de responsabilidade. Existe alguma evidência de que os anticorpos desenvolvidos em resposta ao coronavírus original conferem uma proteção mais fraca contra a variante Gamma; num estudo ainda não publicado, os cientistas estimam que, no final da segunda vaga, uma em cada seis infeções pela variante Gamma eram re-infeções. Em fevereiro a variante era já responsável por praticamente todos os casos na cidade, tendo conseguido espalhar-se rapidamente por todo o Brasil e estando já na origem de praticamente uma em cada dezasseis infeções nos EUA.
Variantes como a Gamma são preocupantes, e nas últimas semanas a variante Delta, mais contagiosa, foi responsável por surtos em regiões dos EUA com baixas taxas de vacinação. Mas, também em relação a estas variantes, a imunidade é algo gradual e não binário. Elas são em grande medida semelhantes ao vírus original. Muitas das defesas criadas pela vacinação ou por exposição ao vírus permanecem mesmo que este se altere. “Raramente se verifica que uma mutação destrua completamente a capacidade de os anticorpos reconhecerem o vírus”, afirma Scott Hensley, imunologista da Universidade da Pensilvânia. Até ao momento, estudos indicam que as vacinas da Pfizer, Moderna e Johnson&Johnson protegem contra as principais variantes do coronavírus, apesar de os anticorpos gerados serem ligeiramente menos eficazes no reconhecimento das suas formas mais avançadas. Uma mutação pode afetar a ligação de alguns anticorpos, enquanto outros continuam a fazer o seu trabalho. A imunidade das células T é ainda mais durável: enquanto os anticorpos se ligam à superfície das proteínas virais, as células T reconhecem pequenas peças destas proteínas apresentadas pelas células; estas peças, que habitualmente têm origem no interior do vírus, tendem a permanecer iguais mesmo quando a superfície mais maleável do vírus se altera. “Há muita redundância no sistema”, indica Pepper. Mesmo que as variantes consigam contornar uma parte das nossas defesas, podem ser apanhadas por outras. Entretanto, a comunidade avança nos ensaios clínicos relativos a reforços vacinais e à atualização das vacinas.
É possível que, a longo prazo, a nossa memória imunitária passe a funcionar contra o próprio corpo. Durante décadas os investigadores da gripe puderam observar que as respostas de anticorpos mais fortes foram demonstradas contra estirpes às quais os indivíduos foram expostos durante a infância. Este fenómeno, que os cientistas designam por “pecado antigénico original”, demonstra que as memórias imunológicas da infância têm uma influência continuada ao longo da vida. Os anticorpos que se formam num encontro inicial com o vírus continuam a responder a infeções e vacinações que acontecem décadas depois – mesmo depois de o vírus ter evoluído – o que torna o sistema imunitário menos eficiente na atualização da sua resposta. “A memória imunitária é despertada para combater antigénios que já lá não estão, refere Hensley. Estes anticorpos ineficazes podem impedir o sistema imunitário de atualizar a sua resposta; o sistema insiste em lutar contra o último inimigo. Num futuro distante, o pecado antigénico original pode moldar a resposta do nosso corpo ao SARS-CoV-2, tornando mais difícil a adaptação das nossas defesas a novas estirpes. É uma realidade impactante e séria: às vezes lembramo-nos tão bem que a própria memória se transforma numa espécie de ângulo morto.
Para já, é o ritmo da vacinação global que determina de forma mais marcante o nosso futuro a curto-prazo com a COVID. “O melhor que podemos fazer é vacinar o mundo da forma mais rápida possível para conseguir limitar a evolução viral”, conta Alex Greninger, virologista na Universidade de Washington. (Como investigadora, colaborei tanto com Hensley como com Greninger). Mais infeções conferem mais oportunidades de desenvolvimento do vírus, como verificamos no último ano em que as variantes se espalharam de forma rápida por todo o mundo, independentemente do local onde surgiram. A pandemia só terminará quando acabar para todos.
Immunitas, a palavra latina a partir da qual “imunidade” deriva, é um termo legal que era usado para descrever a isenção de impostos ou de jurisdição. Mas o mundo epidemiológico é mais confuso que o legal. Para descrever as complexidades deste sistema talvez fosse preferível usar o termo “resistência”, do verbo latino resistere, que significa “conter”. A resistência imunitária contém o vírus. Faz com que a exposição viral mais dificilmente se transforme numa infeção – assintomática ou não – ou em doença grave. As vacinas e as infeções, especialmente as infeções mais longas, tendem a construir a nossa resistência contra os patogenos. O tempo e as mutações virais erodem-na gradualmente. Quanto maior for a nossa resistência, maior será a tolerância à exposição viral sem desenvolvimento de doença. Quanto mais baixa, maior a probabilidade de ficarmos doentes.
Esta visão gradualista da imunidade é importante para entendermos as re-infeções por coronavírus. A primeira re-infeção detetada em todo o mundo aconteceu em agosto, num homem de 33 anos que viajou de Espanha para Hong Kong tendo testado positivo à chegada. Teria tido uma infeção com sintomas ligeiros cerca de 5 meses antes. Apenas teve sintomas durante alguns dias e não parecia ter desenvolvido anticorpos detectáveis após essa infeção. Ainda assim, o segundo episódio foi totalmente assintomático, e o vírus deixou de ser detectável ao longo de uma semana. “Este é um exemplo paradigmático de como a imunidade deve funcionar”, publicou a imunologista Akiko Iwasaki, da Universidade de Yale, no Twitter. “A imunidade não foi suficiente para impedir a re-infeção, mas protegeu a pessoa da doença”. Talvez a resposta inicial dos anticorpos tivesse sido demasiado fraca para impedir a re-infeção, mas outras camadas de imunidade mantiveram a situação controlada. Cinco dias após a segunda infeção, o paciente testou positivo para anticorpos COVID, o que sugere que a re-exposição fortaleceu a sua resposta.
Atualmente existem já estudos de larga escala que quantificam a frequência das re-infeções por coronavírus. Tal como sugeria a análise do navio de pesca, as taxas de re-infeção parecem ser baixas. Estudos realizados na Dinamarca e no Reino Unido revelam que mesmo vários meses depois de ter testado positivo para COVID-19, um indivíduo adulto tem cerca de menos 80% de probabilidade de ser infetado. Quando as re-infeções acontecem, são geralmente ligeiras ou assintomáticas. Mesmo que o vírus consiga entrar, a resistência é capaz de limitar os seus efeitos.
A mesma lógica é aplicável a infeções em indivíduos completamente vacinados. Embora a infeção aconteça, é muito mais provável que estes casos, tal como os de re-infeção, sejam leves ou assintomáticos. Cem milhões de americanos tinham já a vacinação completa nos primeiros quatro meses de 2021; entre eles, foram reportadas pelo C.D.C. cerca de dez mil infeções até ao final de abril. Apenas mil resultaram em hospitalizações; ou seja, apenas uma em cada 100 mil pessoas vacinadas foram hospitalizadas com COVID durante este período. Até ao momento não se pode dizer que estas infeções sejam desproporcionalmente provocadas pelas variantes que causam maior preocupação. Cerca de um quarto foram assintomáticas; é muito provável que esta estimativa esteja muito aquém da realidade, uma vez que muitos indivíduos vacinados podem nem sequer se ter apercebido da infeção.
Os relatos de re-infeções e infeções em pessoas vacinadas tendem a ser vistos, nos dias de hoje, como uma surpresa desagradável. No entanto, esta realidade vai tornar-se cada vez mais normal à medida que a fase aguda da pandemia vai passando. Apesar do espetacular sucesso das vacinas, não é provável que o vírus seja erradicado ou mesmo que sejamos capazes de atingir a imunidade de grupo; o vírus está demasiado espalhado e é demasiado transmissível para que tal aconteça. Ainda assim, a nossa relação com ele vai alterar-se profundamente. À medida que a nossa resistência imunitária coletiva aumenta, a COVID vai passar de ameaça pandémica a endémica. O vírus vai continuar a circular em níveis baixos, mas a sua disseminação será mais lenta, e a maioria das infeções será menos severa. O vírus irá infetar sobretudo crianças não vacinadas – que geralmente têm infeções assintomáticas e quase nunca desenvolvem sintomas graves – e vai causar infeções leves em adultos vacinados. Determinados grupos, nomeadamente pessoas idosas e imunossuprimidas, vão continuar a ter maior risco de complicações graves; os mais vulneráveis poderão morrer de COVID-19 da mesma forma que hoje morrem de gripe e pneumonia. Mas os riscos serão menores para indivíduos com alguma resistência imunitária. Para a maioria, a COVID será um inimigo conhecido, tal como a gripe – apenas mais um entre os perigos com os quais convivemos diariamente.
Esta visão de um futuro com COVID endémica traz ecos do passado. Desde o início do século XX ocorreram quatro pandemias de gripe; cada uma delas introduziu uma nova versão do vírus que continuou a circular durante décadas (as pandemias de 1968 e 2009 são responsáveis por estirpes de gripe sazonal que circulam atualmente). Os cientistas especulam que alguns dos vírus das constipações comuns também possam ter tido origem em pandemias do passado. Existe evidência indireta de que o coronavírus sazonal OC43 poderá ter tido origem na pandemia de 1889, que matou um milhão de pessoas em todo o mundo.
Num mundo com COVID endémica é possível que apanhemos o vírus, ou que sejamos vacinados em criança e depois precisemos de um reforço anual juntamente com a vacina da gripe. Vão existir épocas de COVID, tal como existem da gripe, durante o inverno; ao longo dos anos, à medida que se acumulam novas variantes, pode acontecer uma época particularmente má. É possível que apanhemos COVID com alguma regularidade e intervalos de poucos anos. Algumas vezes a doença será leve, vamos ter tosse e sentir cansaço durante um ou dois dias, tal como acontece com qualquer constipação; estes episódios vão fortalecer a nossa resistência imunitária. Ocasionalmente a infeção será mais grave. Por exemplo, se não tivermos sido vacinados nesse ano, ou se existir uma nova variante; ou talvez tenhamos estado expostos ao vírus de forma particularmente prolongada por termos convivido com um colega de trabalho ou amigo doente. Seja qual for o motivo, algumas infeções poderão ser capazes de nos deixar de cama durante uma semana ou até mais. À medida que envelhecemos e que o nosso sistema imunitário enfraquece, a probabilidade de termos complicações será maior, tal como acontece com a gripe. Os mais vulneráveis poderão optar por evitar viajar ou mesmo sair no pico de uma época de COVID – poderão até optar por usar uma máscara (talvez a pandemia nos inspire a usar máscara para evitar a gripe). O vírus vai permanecer connosco, mas a resistência imunitária alargada da comunidade irá moderar os seus efeitos mais nefastos.
A perspetiva de um futuro a longo-prazo com a COVID pode saber a desilusão. A varíola, o único vírus humano alguma vez erradicado, foi eliminado com sucesso em 1980 depois de uma longa campanha de vacinação; a erradicação global da poliomielite encontra-se na sua fase final. Nos Estados Unidos, a vacinação das crianças criou imunidade de grupo contra o sarampo e a parotidite (papeira), limitando-as a surtos ocasionais. Todos gostaríamos que o coronavírus se tornasse também ele parte da nossa memória histórica. No entanto, a memória imunitária nem sempre é durável, especialmente em relação a vírus que se modificam. O nosso corpo não irá lembrar-se perfeitamente da COVID, e por isso não o poderemos esquecer.