As crianças de três anos também existem

Publicado no Megafone do Público, aqui.

Em Junho de 2024, o Governo vinha esclarecer em comunicado que “concluiu que a rede existente é insuficiente para o aumento da procura na educação pré-escolar para crianças com três anos, havendo o risco de milhares de crianças e famílias ficarem sem resposta”. É uma boa e óbvia conclusão, mas que para já não passa disso mesmo.

Em 2023, depois de três anos a pagar a mensalidade de uma creche privada longe de casa (o programa Creche Feliz só iniciou em 2022, para crianças nascidas a partir de Setembro de 2021), esperava conseguir uma vaga num dos cinco jardins-de-infância públicos da minha área de residência que coloquei no formulário de matrícula. Qual não foi o meu espanto quando recebi o telefonema, já em cima do Verão, informando que provavelmente tal não seria o caso, pois as vagas estavam todas ocupadas com crianças mais velhas (e, como tal, prioritárias). Como é difícil gerir a vida e o orçamento familiar com base em probabilidades, fomos mais uma vez procurar resposta ao sector privado, onde a oferta também não abunda.

Dois anos depois, o filme repete-se com a criança mais nova. Mas desta vez é ainda pior, uma vez que o número de crianças em creche aumentou por via da gratuitidade. Isso mesmo refere também o comunicado do Governo.

Em entrevista à RTP, o ministro Fernando Alexandre diz que vão ser feitos contratos de associação para resolver este problema. É melhor do que nada, mas tal como acontece com a Creche Feliz, trata-se de mais um penso rápido para a educação na primeirainfância, que o próprio ministro identifica como um dos principais preditores de sucesso futuro.

É importante que se assuma que não existe uma visão integrada daquilo que queremos enquanto sociedade para o desenvolvimento das nossas crianças nos seus primeiros anos de vida. As crianças de três anos, particularmente, estão enfiadas no buraco negro burocrático entre a tutela das creches, que pertence à Segurança Social, e a tutela do pré-escolar, do Ministério da Educação.

Esta é uma idade profundamente sensível, de transição, onde as necessidades de cada criança, mesmo em questões bastante pragmáticas (já para não falar em nuances de desenvolvimento cognitivo), são muito variáveis. Todos os pais que passaram por este processo conhecem a importância de temas como o desfralde e as sestas.Era da maior importância que a passagem da creche para o pré-escolar fosse um processo centrado na criança, assegurando a sua estabilidade, não forçando mudanças de escola ou precipitando a adaptação a contextos para a qual a criança claramente não está preparada. E no entanto são precisamente as crianças nesta idade que caem numa situação de incerteza e falta de opções, na qual nenhum destes aspectos é tido em conta.

Como se explica que assim seja? A meu ver, continuamos a viver à sombra de uma realidade antiga e patriarcal, na qual as mulheres (mães, avós, tias) não estavam inseridas no mercado de trabalho e como tal tinham disponibilidade para cuidar dos mais pequenos. E, já agora, dos idosos e outras pessoas dependentes. Não só tinham disponibilidade, como tinham, social e moralmente, esse encargo. O panorama mudou, o Estado recebe com satisfação os impostos e contribuições de todas estas novas trabalhadoras. A isso chama igualdade — mas sem nunca retribuir com políticas que a cumpram em pleno. Saibamos exigi-lo.

How to Survive the Office Bull on Your Road to Progress

a solitary bull stands in the middle of a road

I spent an entire day in bed recently, flattened by some stomach bug that hit both me and my husband. We bounced back quickly, but then he had to travel for work, leaving me solo with our four-year-old and two-year-old. Whatever scraps of energy I have in the morning are drained within the first hour of trying to get them dressed and fed.

Enter: the work idiot.
This is the person who woke up brimming with energy—and decided to channel it into making everyone else’s life miserable. Picture someone who likely enjoyed a peaceful morning, complete with a skincare routine and coffee in silence, only to show up at work ready to unleash their toxicity on their colleagues.

There are many flavors of work idiot, but my least favorite is the one who combines a heavy dose of Dunning-Kruger with zero emotional intelligence. Think: a proud, dumb bot. The kind of person you’d gladly trade for a competent AI—at least AI doesn’t complain (yet).

As a former Customer Support rep turned Product Manager, I’m no stranger to pushback. Engineers, for example, love to critique: too much detail in requirements, not enough detail—it’s a never-ending dance. But the work idiot? They take it to the next level. This is the person who insists on edge case scenarios so absurd, you’re left debating the button padding’s behavior during a nuclear apocalypse (still improbable? Not sure). Or worse, they demand negative scenarios—detailing everything the button isn’t supposed to do. Like, no, the button should not trigger the nuclear bomb, padding be damned.

Their problem isn’t just a fear of ambiguity—it’s a complete inability to handle it. They lack the common sense and sliver of creativity needed for solving even trivial problems. They trust no one. Their strategy? Demand exhaustive detail from everyone else so that their personal contributions are minimal, reducing their risk of failure to nearly zero. It’s annoyingly clever for an idiot.

These people ask for feedback but don’t actually want it. Why? Because they’re the self-proclaimed greatest in the universe, and any critique must mean you’re doing your job wrong.

Unfortunately, you can’t avoid them. They’re like a giant, immovable bull parked in the middle of your road to progress. Your only option is resilience. Channel their dumbness into something productive. Ask yourself, What would a bad AI do if I prompted it like this? That’ll give you a glimpse into their predictable nonsense. Prepare accordingly. Finish your work. Then go for a run with some girl-power playlist blasting in your ears.

A reflection on the Birmingham Screwdriver

Birmingham Screwdriver Company Art by Foka Wolf

This week, I delved into the intriguing world of the Birmingham screwdriver—a slang term for a hammer. It turns out that in the 19th century, Birmingham, a bustling hub of the Industrial Revolution, faced a similar bias to the one we’ve witnessed more recently toward China; there was a preconceived notion that everything produced there lacked quality due to unskilled labor. Due to this lack of skill, workers would use the same tool – supposedly, a hammer – for all purposes.

“If the only tool you have is a hammer, it is tempting to treat everything as if it were a nail.” – I had already heard this quote, which seems to be attributed to Maslow (the same person who created the hierarchy of needs), but the Birmingham historical background brings a different charm to the concept. Fast forward to 2024, I am often reminded of it by the highly skilled workers of the tech community. In tech, trends in tooling often resemble Birmingham screwdrivers. 

Take Scrum, for instance. It’s been around for almost three decades, yet only recently have people begun to grasp that agility is more about mindset than process. It’s about adapting your approach based on your team’s people and purpose. More recently, this notion struck me when, as a product manager, I noticed a push towards releasing everything as an A/B test. While this can be beneficial in certain scenarios, it’s not a one-size-fits-all solution. For instance, in my case with a small audience, running experiments can lead to long waits for meaningful results and legal compliance headaches. I fear that sometimes people may take refuge in experimentation to compensate for poor discovery (hence, higher risk).

Back to the hammer. Cognitive biases affect every profession, regardless of “skill” level. I use “skilled” in quotes because true expertise includes understanding our own cognitive distortions. Education often overlooks teaching us critical thinking and self-awareness. It’s not just about learning what others have theorized but stepping into the shoes of the philosopher, constantly questioning assumptions and beliefs. Discovering and addressing our biases not only makes us better professionals but also more empathetic individuals. We begin to see that certain behaviors stem from a lack of exposure to information or critical stimulation, rather than inherent flaws. As a parent navigating the challenges of raising a curious 4-year-old, I’m reminded daily of how hard it is to foster a questioning mindset, as the first thing she’ll do with it is to object my parental authority. So excuse me while I drown in despair over constant toddler meltdowns – I’m doing it for the greater good.

A deseducação de Maria Montessori

Tradução para Português do artigo publicado por Jessica Winter na revista The New Yorker a 3 de Março 2022


O seu método, destinado ao público, transformou-se em privilégio.

Quando a minha filha era pequena desenvolvi uma obsessão por uma escola que ficava a poucos quarteirões do nosso apartamento – uma casa de conto de fadas de estilo Tudor, com painéis vermelhos, chaminé em tijolo e um parque infantil todo feito em madeira. As janelas do rés-do-chão escondiam-se atrás de altos arbustos de um verde escuro e impenetrável. E, também ali, estava tudo aquilo que uma infância deveria ser, acreditava eu – só faltava lá estar a minha filha. Quando a visitei, a escola correspondeu às expectativas. Crianças dos dois aos seis anos mostravam-se sérias e serenas, conversavam umas com as outras ocasionalmente num tom baixo e atencioso. Empilhavam blocos, faziam correntes com contas e organizavam quadros de letras. Eu já tinha visto aqueles blocos, contas e quadros antes, mas nunca usados daquela forma, com representações tão específicas e meticulosas. A certa altura chegou a hora de “andar na linha” – um ritual matinal em que as crianças andavam sobre uma linha de fita adesiva no chão, às voltas, em silêncio e espaçadamente – senti-me dominada por uma sensação de espanto com tal conformidade.

Aquela era a nossa escola Montessori local. Convenci-me de que, com alguma poupança e criatividade, poderia de alguma forma arranjar dinheiro para lá inscrever a minha filha. Marquei a entrevista obrigatória; a diretora comentou comigo: “Oh, ela é fantástica”; e nesse momento eu estava capaz de assinar um contrato com a Sea Org1 em troca de um ano de matrícula. Mas ao analisar melhor os números, no fim de semana seguinte, concluí que só poderia pagar a mensalidade se me endividasse – e, de facto, considerando essa possibilidade, podemos dizer que há pouca coisa que não consigamos “pagar”. Anulei a inscrição e para me sentir melhor comigo própria comprei um quadro de contagem Montessori de cem peças na Amazon para lhe oferecer. (Ela mal lhe tocou, e eu acabei por me livrar dele depois de constatar que o irmão mais novo tinha desenvolvido um certo interesse por comer os números).

Pais curiosos com a pedagogia Montessori mas com orçamento limitado poderão encontrar uma certa consolação na ampla e duradoura influência da fundadora do movimento, Maria Montessori, médica e educadora italiana cujas ideias e inovações estão omnipresentes mesmo nas escolas que não usam o seu nome. A rejeição das carteiras individuais, a favor de tapetes e mesas infantis, a primazia das aprendizagens práticas, das observações diárias como a “aula de linha” (quando as crianças se sentam de pernas cruzadas num tapete para partilhar novidades e participar em aulas em grupo) ou a “hora da escolha” (quando as crianças se distribuem por vários “centros” da sala de aula dedicados à arte, à música, à construção de torres, entre outros) – todos esses elementos da educação infantil têm origem na filosofia de Montessori.

Na viragem do século XX, pensar que a educação pudesse ser centrada na criança – moldada de acordo com seu cérebro e corpo reais – era considerado revolucionário. Montessori e muitos dos seus discípulos transformaram-no em senso comum. Mais do que isso, acreditavam em algo que ainda hoje parece contra-intuitivo: que as crianças são, na sua essência, seres metódicos e autodirigidos, com uma forte ética de trabalho, perfeitamente capazes de se concentrar profundamente, e que sua tendência para a desatenção e interrupção pode ser considerada uma resposta razoável a um ambiente pouco harmonioso. Como escreve Cristina De Stefano em “The Child Is the Teacher” (Other Press), uma nova biografia de Montessori, “As crianças, colocadas no ambiente certo, dotadas dos materiais certos, deixam de ser agitadas e barulhentas e transformam-se em criaturas silenciosas, calmas, felizes por estarem a trabalhar”.

Esta filosofia educativa, a mais ordenada e tranquila de todas, teve origem nas circunstâncias mais sombrias e caóticas que se possam imaginar. Em 1897, Montessori, uma das primeiras mulheres em Itália a obter um diploma em medicina, tinha acabado de se formar pela Universidade de Roma e era voluntária na clínica psiquiátrica da universidade, onde as suas responsabilidades incluíam visitas aos medonhos asilos da cidade. Naquela época, a doença mental era amplamente vista pelos católicos como uma forma de retribuição divina, mas Montessori afeiçoou-se às crianças que viviam nesses asilos, muitas das quais tinham sido internadas devido a deficiências, embora outras simplesmente sofressem de desnutrição ou negligência. O seu interesse pelas crianças levou-a ao encontro dos trabalhos do pioneiro da educação especial Édouard Séguin, que utilizava bolas, blocos, contas, botões e ferramentas do quotidiano no seu trabalho com crianças de asilos em Paris, e de Friedrich Froebel, o educador alemão que deu origem ao conceito de jardim de infância e que deu o seu nome aos brinquedos conhecidos como “presentes Froebel”: bolas de lã, esferas e cilindros de madeira. Séguin e Froebel perceberam que o desejo das crianças de tocar e manipular tudo à sua volta, facilmente confundido com comportamento a ser gerido, poderia ser mais corretamente interpretado como autoeducação.

Em 1900, com 29 anos, Montessori tornou-se co-diretora da Escola Ortofrenica2, em Roma, o primeiro instituto de formação do país para professores de educação especial. Os estagiários trabalhavam com alunos seleccionados dos asilos ou com aqueles que não tinham conseguido acompanhar o currículo da escola pública. Durante dois anos, Montessori ensinou alunos e professores durante mais de onze horas por dia, ficando até mais tarde a ler, escrever e esboçar planos para construir os seus próprios “presentes” inspirados em Froebel. Alguns dos seus alunos, surpreendentemente, conseguiram passar nos mesmos exames da escola primária realizados aos seus pares do ensino regular, embora Montessori tenha desvalorizado esses resultados – o bom desempenho dos seus “pequenos idiotas”, como lhes chamava, servia mais como testemunho do estado do sistema escolar estatal do que como aprovação da sua pedagogia, afirmou.

A Escola Ortofrenica foi também ponto-chave de um melodrama pessoal: Montessori apaixonou-se pelo seu co-director, Giuseppe Montesano, e, em segredo, deu à luz um filho. A criança foi levada para uma ama de leite no campo; Montesano casou com outra mulher, e Montessori, considerando insuportável a proximidade ao seu ex-amante, demitiu-se do cargo na escola. De Stefano conta que neste momento ela perdeu “tudo o que tinha feito pela educação especial, a missão pela qual tinha abandonado o filho à nascença”. Tamanho sacrifício funcionaria perfeitamente como um trágico volteface num filme biográfico da vida de Montessori candidato ao Óscar. No entanto ele não reflete inteiramente a realidade: depois de se demitir, Montessori dedicou-se à investigação antropológica em escolas públicas convencionais, terminou a tradução de cerca de seiscentas páginas do trabalho de Séguin para italiano, e aceitou um cargo na Universidade de Roma, onde proferiu palestras que propunham “fundamentos práticos para uma reforma de grande alcance nas nossas escolas”. (Reencontrou-se com o filho, Mario, quando este era adolescente, e, em adulto, ele tornou-se um dos seus colaboradores mais próximos).

A oportunidade de concretizar essa reforma surgiu em 1906, quando Montessori, à época já uma educadora reconhecida, obteve o apoio de um grupo de financiadores romanos. No ano seguinte, no dia da Epifania, inaugurou a sua primeira sala de aula — a Casa dei Bambini, ou Casa das Crianças — num prédio arrendado em San Lorenzo, um bairro operário com elevados índices de pobreza. A filha do porteiro do edifício ficou nominalmente responsável, supervisionando cerca de cinquenta crianças, dos dois aos seis anos, em atividades como abotoar botões, encher e esvaziar recipientes com água e desenhar com lápis de cor. Estas escolas multiplicaram-se em Itália, depois por toda a Europa, encontrando muitas vezes os seus ambientes mais acolhedores em regiões com forte presença socialista. Na Casa dei Bambini de Nápoles, alguns dos alunos eram tão pobres que não conheciam os utensílios que eram colocados na mesa à hora das refeições; em França, as aulas Montessori foram criadas expressamente para ajudar crianças traumatizadas pela Primeira Guerra Mundial. E, no entanto, estas crianças, apesar das suas privações, demonstraram uma resposta impressionante aos métodos de Montessori. Em particular, fizeram progressos rápidos e entusiasmados nas suas competências de escrita, motivados por um sistema — letras móveis, recortadas de lixa e coladas em quadros — baseado em brincadeira, e não na memorização mecânica.

Montessori encontrou os contornos da sua filosofia e detalhou-os no seu primeiro livro, publicado com o título “O Método Montessori” na América, em 1912. Era profético de formas que permanecem estranhamente atuais. As suas salas de aula aboliram recompensas e castigos — uma entre muitas das suas rejeições à doutrina da Igreja Católica que divide entre céu e inferno — e visavam incutir motivação intrínseca e auto-regulação, conceitos promovidos por populares gurus parentais da atualidade, como Janet Lansbury e Becky Kennedy (“Dr. Becky”). Nos seus lamentos sobre a forma como os adolescentes estão “sujeitos à chantagem mesquinha das ‘más notas'”, Montessori antecipou o “movimento sem notas” nas escolas, o movimento de não adesão a testes padronizados e uma vasta literatura indicando que o foco nas notas e testes pode desencorajar a aprendizagem significativa. Ao afirmar que, nas palavras de De Stefano, “o autoritarismo e a competitividade — os ingredientes da escola tradicionalmente concebida — criam violência”, Montessori previu aspectos do chamado “funil escola-prisão”3.

“A criança, um ser humano livre, deve ensinar-nos e ensinar à sociedade ordem, calma, disciplina e harmonia”, escreveu Montessori. De certa forma, o motor do seu método era paradoxal: ordem é liberdade, e vice-versa; o professor está subordinado à criança, mas de forma poderosa; a criança deve ser deixada por sua conta, mas de forma sistemática, e os materiais devem ser feitos de madeira.

As editoras americana e italiana de De Stefano declararam, nos seus materiais promocionais e na sobrecapa do livro “A Criança É o Professor” que esta é “a primeira obra biográfica sobre Maria Montessori escrita por uma autora que não é membro do movimento Montessori, mas que teve acesso a cartas originais, diários, notas e textos escritos pela própria Montessori”. É uma afirmação curiosa, considerando que a jornalista Rita Kramer publicou uma biografia, em 1976, baseada no arquivo da Associação Montessori Internacional e em entrevistas com Mario e outros familiares. No seu posfácio, De Stefano descarta esse livro como “sólido mas datado”, e no entanto a sua própria biografia parece às vezes uma espécie de resumo do trabalho de Kramer, recapitulando os mesmos eventos e retirando do mesmo saco de relatos e citações, mas frequentemente despojando-os de contexto histórico, cultural ou pedagógico.

O que De Stefano acrescenta ao tema é um estilo distinto – ela narra a vida de Montessori num presente declamatório, por vezes hiperbólico, começando com uma jovem Maria sentada numa sala de aula em Roma, em 1876, que “é como todas as outras no Reino de Itália: uma prisão para crianças”. Quando Maria lê em voz alta para a sua turma, “põe todos a chorar”. (A sério? Todos?) Os capítulos são curtos e o ritmo é rápido: Maria faz a entrevista para a faculdade de medicina na página onze. Parece brilhar sozinha na escuridão; tem muito poucos precursores (a excepção é Séguin, a quem De Stefano dedica dois capítulos e meio) e nenhuma vida após a morte. Quando ela morre, o livro acaba.

E qual é a “vida após a morte” de Maria Montessori? De Stefano critica os céticos não identificados que acreditam que as “ideias de Montessori não podem ser aplicadas em escolas para as massas, que só funcionam com os filhos dos ricos, que frequentam escolas privadas”. No entanto, a ironia óbvia da cruzada de Montessori em prol dos mais pobres e menos poderosos da sociedade é que o seu legado mais visível são escolas privadas seletivas para a elite. À medida que as notícias da experiência de San Lorenzo se espalharam por Roma, dois dos primeiros adeptos foram o presidente da câmara e o embaixador britânico na Itália; aristocratas e diplomatas começaram a criar salas de aula Montessori nas suas salas de estar. A primeira escola Montessori na América do Norte ficava dentro de uma mansão georgiana em Westchester, em 1911, com doze alunos: os seis filhos de Frank Vanderlip, um fundador da Reserva Federal, e alguns primos e amigos. A educadora Helen Parkhurst, que se formou com Montessori em Roma, fundou a Escola Dalton, em Nova Iorque, onde o valor das propinas ultrapassa hoje os cinquenta e sete mil dólares. E, embora a influência de Montessori continue a ser uma força salutar nos programas universais do pré-escolar, ela desaparece abruptamente no jardim de infância público, onde os objetivos curriculares comuns4 eliminam a brincadeira livre favorecendo exercícios académicos e avaliações. Atualmente existem apenas algumas centenas de escolas públicas Montessori nos EUA. Mira Debs, diretora executiva do programa de Estudos Educacionais de Yale, observa um padrão nestas escolas, que se vão “tornando mais brancas e ricas com o tempo”.

A ascensão de Montessori partilhou a mesma trajetória da de outros visionários. Como De Stefano mostra, os efeitos desorientadores da fama desenvolveram nela uma dependência pela adulação, mas também uma desconfiança paranóica mesmo dos seus acólitos mais próximos. (Quando se afastou de Samuel McClure, empresário editorial que a ajudou a promover o seu trabalho nos EUA, um apoiante consternado observou: “Parece-me que ela não tem capacidade de perceber quem são os seus amigos.”) A sua fé ardente na sua filosofia e nos seus métodos esteve na origem da sua popularidade, mas também do medo de que essa mesma popularidade os diluísse e destruísse. A longevidade do culto de Montessori advém, em parte, dos seus esforços extremos para proteger o seu trabalho da contaminação: manteve um monopólio pessoal sobre a formação e certificação de professores no seu método, controlava rigidamente a distribuição de textos e ferramentas Montessori, e até procurou patentear as suas pequenas variações de objetos familiares como blocos com letras ou um ábaco.

Claro que o que ela tentou controlar não era mais do que a sua própria propriedade intelectual. Por volta dos quarenta anos, à medida que as suas escolas proliferavam e a procura pela sua formação aumentava, Montessori demitiu-se do seu cargo na Universidade de Roma, na expectativa de se concentrar inteiramente no seu crescente movimento educativo. “A partir de agora”, escreveu Kramer, “ela sustentar-se-ia a si e aos seus dependentes com os rendimentos dos seus cursos de formação e os royalties dos seus livros e materiais didáticos, uma situação que conferiu às suas actividades um certo aspecto comercial que não teriam se ela tivesse continuado a ser uma académica assalariada que expunha as suas ideias no meio académico.” Por outras palavras, o incentivo financeiro tornava mais provável que o projecto de Montessori – um casamento entre o altruísmo e a investigação científica, nascido em asilos e bairros degradados – se tornasse transacional e exclusivo. A sua crescente fama, entretanto, ditava o seu afastamento dos laboratórios pedagógicos das escolas de bairros pobres e a entrada nas salas de estar dos seus mecenas da elite. O método Montessori dirigiu-se de forma desproporcionada a crianças brancas e ricas, tal como todas as coisas boas, mas foi também assim porque Montessori via cada vez mais o seu projecto como “um negócio patenteável”, usando as palavras de Kramer. O método não era apenas algo para ser ensinado; era algo para ser vendido.

Vendê-lo envolvia não só uma visão idealizada da criança mas também uma expectativa idealizada do ambiente em que uma criança deveria ser educada. Católica devota, mas anticlerical, Montessori lamentou a visão de que a sua pedagogia moldava a criança de acordo com as preferências da sociedade, em vez de criar caminhos para “as próprias forças das crianças, a si concedidas pelo Criador”, emergirem. “Nestas manifestações prodigiosas da alma da criança, muita coisa foi vista como produto de um método educativo”, escreveu. “O que passou para as escolas comuns foi uma forma mais livre de estudar e de dar tarefas individuais e objectivas. O ‘milagre’ foi oficialmente esquecido.” O efeito trickle down (em que se espera que os benefícios conseguidos pelos mais privilegiados acabem por se multiplicar e ser vantajosos para toda a população) que Montessori descreveu seria talvez inevitável para um modelo educativo com uma barra tão alta no acesso à formação, materiais e financiamento – mas este facto foi obra sua. O seu desprezo era pelas “escolas comuns” em si, claro, e não pelos alunos; mas, mais uma vez, o desprezo é estrutural.

O desprezo também pode parecer-se com filantropia. Em 2018, Jeff Bezos, o antigo aluno Montessori mais rico do mundo, anunciou a doação de dois mil milhões de dólares ao seu “One Day Fund”, dedicado, em parte, à criação de “uma rede de escolas pré-primárias inspiradas em Montessori, de alta qualidade e com bolsas de estudo integrais”. O projeto abriu cinco escolas em Washington desde 2020, com planos de expansão para a Flórida e Texas este ano.

A promessa de Bezos levou alguns especialistas em educação infantil, incluindo Mira Debs, de Yale, e Joel Ryan, diretor executivo do programa Head Start de Washington, a perguntarem por que motivo um homem com uma riqueza avaliada em duzentos mil milhões de dólares teria optado por competir com programas pré-escolares públicos existentes e com falta de recursos, em vez de simplesmente os financiar. A resposta pode ser encontrada no site do One Day Fund, onde se afirma: “O conjunto de clientes que esta equipa de missionários servirá é simples: crianças em comunidades carenciadas por todo o país”. Há todo um novo horror distópico nesta promessa – evoca uma imagem de professores de pré-escolar “quase-jesuítas” a caminharem descalços e desidratados ao longo de quilómetros dentro de um armazém da Amazon, à procura de um quadro de contagem de cem peças, enquanto, noutro local, uma criança espera ansiosamente atrás do seu videoporteiro, desejosa para “Classificar a Sua Experiência”.

No entanto, não há nada de novo neste exercício de pintar o capitalismo com uma espécie de vocação religiosa. Na verdade, Bezos parece ser o típico comentador americano, que vê os professores pela mesma lente que vê um trabalhador da Amazon: invisíveis, essenciais, marginalizados, à mercê das avaliações, pessoas das quais tudo depende e que de tudo podem ser culpadas. O retrato que Bezos faz da pedagogia centrada na criança como uma espécie de serviço ao cliente talvez tenha sido também previsto pela sempre profética Montessori “Nós, professores, só podemos ajudar o trabalho em curso”, escreveu ela, “como servos à espera de um mestre”.

Notas

1 A Sea Org (“Organização do Mar”) é uma ordem religiosa da Cientologia cujos membros dedicam a sua vida ao serviço voluntário em prol da religião. A Sea Org é conhecida por exigir um juramento de serviço simbólico de mil milhões de anos. Source: Wikipedia

2  Ortofrenia é definido como “Arte de corrigir as tendências morais ou intelectuais.” Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

3 Tradução da expressão “school-to-prison pipeline”, um termo adotado nos EUA para designar as políticas e práticas que incentivam o abandono escolar, dessa forma reduzindo as oportunidades de crianças e jovens vulneráveis e encaminhando-as para o sistema de justiça criminal; Fonte: ACLU

4 Nos EUA, a “Common Core State Standards Initiative” é um programa que procura uniformizar os objetivos de aprendizagem no país nas disciplinas de Inglês e Matemática. Fonte: Common Core State Standards Initiative

Beyond the hype: building LLM applications for production

It’s been nearly four months since we launched the first LLM-based feature in Talkdesk: call summarization. An evident first candidate given the relatively simple nature of the use case and the expected impact on agent productivity. While beta testing this new feature with a few selected customers, we moved on to a few other use cases, namely topic extraction, to provide the customer with a list of topics discussed in their calls or chats; and question answering, to support agents handling customer queries.

Many other use cases are already lined up, from automated agent evaluation to message writing helpers. But as a product manager’s mind navigates the sea of possibilities, it’s also important to take a step back and think about the lessons we’re learning along the way.

The ambiguity trap – how users write instructions

I’ve seen many posts arguing that LLMs will revolutionize user experience for the better. With users being able to express their intent using their own language, we can eliminate the learning curve when interacting with an application. I understand this claim, but I think it is somehow naive to think that people are able to always express themselves clearly and concisely. Just think of how many times you, as a human, have received instructions from other humans that were unclear or incomplete. As I read in another post about the challenges of LLMs – just doing what someone asks for isn’t always the right thing. Designing interfaces where user input is in natural language may increase accessibility, but will likely reduce the quality of the output, therefore increasing frustration.

We’ve seen this happen with one particular tool that we made available, where users can instruct the system to generate model training phrases for them by describing a specific user intent in text. This used to be a daunting manual task, so automation is welcomed. However, past the initial excitement, some users started asking the hard questions: what are the best practices to instruct the model for phrase generation? What sort of information needs to be included in the description? Ambiguity generates anxiety, and we don’t want to transform users into prompt engineers. Interacting with a clean UI with affordance can have much lower cognitive load than writing a thorough description of the outcome you’re looking for. This article by Davis Treybig is great and describes all of these design challenges in detail.

The ambiguity trap II  – how LLMs respond to instructions

Downstream applications relying on LLMs expect outputs that conform to a particular structure for effective parsing. While we can tailor our prompts to explicitly outline the desired output format, this is never guaranteed. We are seeing this with question answering. We prompt the model not to return an answer when it isn’t sure of one, but as a prolific chatter, sometimes it will still respond with an “I don’t know” type of answer. How do we deal with this in the UI? The application’s frontend is not able to tell the difference between this answer and a “valid” one, with meaningful content.

Despite this being a nuisance, to someone using a helper tool there’s one thing that is worse than not getting an answer, which is getting a wrong one. This is not a new problem as poor search engines can also produce noisy, non-relevant results with high confidence. But dealing with hallucination is a whole different challenge. Conservative prompt engineering can be effective at tackling this problem, but in the end we can never be 100% sure that the model will comply with instructions.

It’s still unclear to me how we can deal with the lack of predictability. For now, the only feasible option seems to be through prompt engineering. We need to make it a systematic task, with version control – essentially yet another function that needs to be integrated in the product development lifecycle. 

Working with context is hard

Building a question answering solution for business requires informing the LLM of the knowledge context of each customer. Answers need to be strictly based on company vetted data. However, LLMs have context windows, that is, they limit the amount of tokens the model can access when generating responses. Some businesses can have hundreds of thousands of documents with relevant information. We use embeddings to measure content relatedness and select the correct data snippets – ultimately, the success of this operation will dictate the overall success of the feature. It’s just good old search – if that doesn’t work, LLMs won’t save you when it comes to knowledge retrieval.

Cost estimation: mission impossible

The more context you give the model, the better the performance – or at least that’s what we hope for. However, this will also increase latency… and costs – OpenAI charges for both input and output tokens. If we factor in the “natural” output unpredictability, customer variations when it comes to context and constant prompt improvements, making a sound prediction is a difficult task. Also, the LLM world is moving so fast that any prediction is bound to become outdated quickly – hopefully the trend is for cost to continue to go down as competition grows.

Conclusion

“It was the best of times, it was the worst of times” – said Dickens on LLMs. 

It’s impossible not to be excited with the quantum leap of conversational abilities by machines. You can have so much fun experimenting with it, and demos can be mind blowing. However if an incredible demo isn’t followed by actual usage – and more, by a productivity gain (or at least, a super pleasant user experience) – the result will sooner or later be churn. And the market seems to be moving fast from the initial excitement phase to converge in a handful of low risk use cases, particularly in the B2B space – as with any other new tech. Some people will argue that we cannot afford to be conservative – I argue that we cannot afford to ship products that will not solve the customer’s job. Be bold, but learn fast! 

Bismarckian Product Management

At first glance, it might be hard to draw parallels between modern product management and German reunification. But I’m a product manager with an International Relations background, so that’s what you’ll get. 

Otto von Bismarck, the diplomatic mastermind behind the reunification feat, is famously credited with the quote Politics is the art of the possible. It reflects his pragmatic approach to governing and his understanding that compromise is the key to success. He’s one of the most influential figures of European history not because he wanted to change the world, but because he focused on achieving practical and attainable goals in a complex environment; not because he fought against constraints, but because he knew and accepted them. 

Perhaps you can already see where this is going. The world of tech is full of idealistic aspirations, particularly in moments of disruption such as the one we’re experiencing with AI and Large Language Models. But at the end of the day, as we sit back and marvel at technological progress, product management too is the art of the possible. The reason we exist as professionals is because there is a need to establish a complex balance between existing resources, market conditions and customer needs. It’s not an armed revolution – it’s realpolitik in favor of the customer’s interest, a constant search for the best feasible solution within existing constraints.

Idealizing an innovative product takes creativity. Idealizing an innovative product that people need and love takes cognitive empathy. Actually delivering it takes all of this plus a healthy dose of pragmatism. To me, great product leaders stand at this intersection of skills. This might exclude some of our most famous dreamers, but includes many distinguished unknowns who make our lives better everyday by delivering progress in small but significant increments.

Put the “V” in MVP

One of the most painful things to witness in the tech industry is the constant misinterpretation, or even distortion, of Agile or Lean concepts, and Minimum Viable Product (MVP) is a blatant example.

Eric Ries described it as “[the] version of a new product which allows a team to collect the maximum amount of validated learning about customers with the least effort”. Notice that the description starts with its purpose – however this is commonly disregarded by product makers who just focus on the effort aspect. The concept, which reflects a more than reasonable concern with waste, is used to justify poor design decisions, insufficient resource allocation and an overall lack of vision and strategy. 

Context is key: from Ries’ description, it seems that this is a strategy to validate market fit, and I would argue that it is particularly useful when there is a high degree of innovation involved. Nevertheless I’ve seen it being used countless times to describe long standing backlog items – often in supposedly mature products – that aim to solve validated customer needs.

“Let’s just make an MVP” normally means “we have loads of stuff to do and we can’t prioritize properly or negotiate commitments, so let’s just make a poor man’s version of this solution”. User experience is the first victim – it just needs to work, it doesn’t matter if you need 10 consultants just to plug it in, or if customers are constantly raising support tickets because they don’t know how to operate it. Reliability is second – not to mention security.

Where is the viability in this? 

Imagine if the folks in the Toyota factory back in the 40s did the same – to save time, they would start shipping cars that were unreliable, unsafe, and that no one knew how to drive. Would this be considered a major success in efficiency? Or would it hurt their credibility to death?

Trapped in a chamber: sprint review vs reality

Nothing beats the feeling of presenting a brand new, beautiful and functional user interface for the first time – except for the realization that there is no plan to actually make it available for real users.

Tech companies adopted Scrum as a way to deliver on the Agile promise of fast, incremental value. There is a clear product goal that everyone in the team strives to accomplish during the designated sprint time. When working software is delivered frequently, everyone is happy. The sprint review is a success story, progress is praised, people engage in self-congratulating behavior that keeps morale high. It feels like being in a cozy room with padded walls covered in golden glitter – we did it folks, it works! 

But who is paying for the golden walls? The first sentence of the Agile manifesto contains the answer – our highest priority is to satisfy the customer. However, on many occasions, our beautiful working software is not actually available to those who can take advantage of it for purposes other than self-gratification, for multiple reasons:

  • It’s shielded by a complex provisioning layer that requires the intervention of professional services teams
  • It lacks discoverability, meaning that although users have access to it, they will never find it (unless someone guides them)
  • It replaces another existing product or feature and there is no migration plan
  • It’s not scalable to the point that you can actually roll it out to a user base that is large enough to provide relevant feedback
  • More generally, it lacks 3 out of the 4 marketing Ps – the product works, but there is no price (how does it fit our pricing strategy?), no promotion (how is it going to be communicated?) and no place (how is going to be distributed among consumers – or users)

For some reason, this is rarely a cause of concern for scrum team members – and I am not just referring to product owners (or product managers, considered a broader function), although that sort of attitude is even harder to process when coming from folks in those roles. 

Is it because we think this is always someone else’s responsibility? Are we afraid to break the glass into the outside world, where people (aka customers) are not always super nice and friendly? Do we actually enjoy building products in a vacuum? So many questions, so little time.

Then there comes a time when the golden, padded walls start to crumble. Everyone starts to realize that there is no actual adoption, developers complain to their managers about the lack of transparency and usage data. 

When management decides to shield teams from the brutality of early stage feedback and adoption numbers, they are only buying motivation for the short term. Eventually people will start questioning why the hell are they committing to deliver something within two or three weeks if real users will only be able to get their hands on the prize in half a year or more (assuming things won’t be ditched before they even get to that stage, due to strategy shifts). So let’s be honest, as this is the only way to build trust. And let’s work together to bridge the gap.

A natureza da dor

Depois, disse à mulher:

«Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez,

entre dores darás à luz os filhos.

Procurarás apaixonadamente o teu marido,

mas ele te dominará.»

Genesis, 3:16

Passaram vinte dias desde que a Alice nasceu.

A irmã, Inês, nasceu no fatídico mês de março de 2020, quatro dias antes do primeiro decreto de estado de emergência. Nos meses anteriores, nas aulas de preparação para o parto, ouvi vezes muitas vezes que a natureza é perfeita. Talvez por real convicção, talvez como forma de tranquilizar o grupo, a senhora enfermeira tinha como missão encorajar-nos a abraçar o processo da forma mais natural possível. Afinal, nem sempre havia dor, e se havia, ela não era por acaso. Para além disso, o prazer e o amor libertam-nos – e somos nós, as mulheres, quem assume o controlo de toda a química – ocitocina, prostaglandina, adrenalina – a nossa força feminina primitiva aperfeiçoa o cocktail e dispensa qualquer intervenção.

Valeu de pouco esta doutrina, embrulhada numa capa frágil de empoderamento (porque ter poder é, na verdade, poder escolher), à mulher de vinte e nove anos encostada a um canto da sala de recobro, sozinha, em hipotermia, após uma cesariana de emergência. O útero começou a contrair dois dias antes, mas a natureza não foi capaz de produzir muito mais para além da dor. O problema é conhecido – desproporção cefalopélvica – a cabeça de um recém-nascido é, em média, dois centímetros mais larga do que o canal de parto. Escreveu Bill Bryson:

Se alguma vez houve um evento que contraria o conceito de desígnio inteligente, é o ato do parto. Nenhuma mulher, por mais devota que seja, alguma vez disse enquanto dava à luz, “Obrigado, meu Deus, por este processo tão bem pensado.”

Bill Bryson, O Corpo: um guia para ocupantes

Não há, portanto, amor que valha a estes dois centímetros. Ele só chega depois do alívio, e chega com tamanha força que nos turva a memória. Por isso, dois anos e meio depois, entro novamente na sala de parto. A velocidade do processo, desta vez, foi literalmente estonteante. A “hora curta” não deu tempo à anestesia, o que fez com que parecesse um dia. O Prémio Nobel da Literatura vai para quem conseguir descrever a dor – apenas posso falar da vontade de desmaiar, da sensação de fraqueza e de impotência, muito contrária ao vigor feminino quase místico que deveria, supostamente, surgir. E quanto aos dois centímetros, foram resolvidos por um engenho humano um pouco arcaico chamado episiotomia. Mais uma vez, onde estava a perfeição da natureza quando foi precisa?

Merit is contextual

Sounds like an odd topic to come mind when you’re tidying up the kitchen, but our brains have curious ways of transforming what should be a simple daily task into a life reflection.

I was doing the dishes and getting this common feeling of never being able to achieve the level of domestic order I need to feel at ease. There’s always something that is not quite right – some breadcrumbs on the floor, a plant that hasn’t been watered, a stain on a towel. And then I questioned myself: why do I constantly feel this way? I immediately found a culprit: my mother.

How can someone have such an impeccable discipline when it comes to keep things in order, whilst caring for an entire family and working forty hours a week? She definitely set the bar too high – she still does. Born in 60s Portugal in a very rural suburb, in a house without running water, as a child she used to take penicillin shots at the grocer’s to cure her throat infections, as accessible healthcare was non-existent. She suffered from anxiety and panic attacks in a world where you were simply not allowed to. And it was anxiety that ultimately drove her away from school while still a teenager. She naturally became a caretaker: raised two kids, cared for all four of my grandparents while they were sick (cancer, Alzheimer’s, and more), worked as a cleaner in a school.

This is not supposed to be one of those misery tales you get to see on daytime TV, which accomplish the feat of actually being demeaning to the people they are supposed to praise. We’re talking about a happy family, with food on the table. However I do get this story popping out of the back of my head whenever I read about merit and about how it needs properly compensated. Merit is often seen as a synonym to academic success, climbing the company ladder, or simply making a whole lot of money.

But here’s the catch: merit is contextual. It doesn’t look the same for everyone, so you can’t create a general rule of thumb to compensate it. If your parents already made decent money, then perhaps making even more is not a great measure of your own success (sorry to break it to you like this but you don’t have to be a genius to get return on capital). Overcoming your own struggles and still being able to make progress and contribute to society – that is merit. Contributions can be simple: raise decent children, take care of the elderly, protect nature, and pay your fair share of tax to try to raise others out of poverty. If you’re able to do this and still send a rocket ship to the moon, you are (quite literally) out of this world. Most of us are still here, figuring out how to keep our kitchens clean.