As crianças de três anos também existem

Publicado no Megafone do Público, aqui.

Em Junho de 2024, o Governo vinha esclarecer em comunicado que “concluiu que a rede existente é insuficiente para o aumento da procura na educação pré-escolar para crianças com três anos, havendo o risco de milhares de crianças e famílias ficarem sem resposta”. É uma boa e óbvia conclusão, mas que para já não passa disso mesmo.

Em 2023, depois de três anos a pagar a mensalidade de uma creche privada longe de casa (o programa Creche Feliz só iniciou em 2022, para crianças nascidas a partir de Setembro de 2021), esperava conseguir uma vaga num dos cinco jardins-de-infância públicos da minha área de residência que coloquei no formulário de matrícula. Qual não foi o meu espanto quando recebi o telefonema, já em cima do Verão, informando que provavelmente tal não seria o caso, pois as vagas estavam todas ocupadas com crianças mais velhas (e, como tal, prioritárias). Como é difícil gerir a vida e o orçamento familiar com base em probabilidades, fomos mais uma vez procurar resposta ao sector privado, onde a oferta também não abunda.

Dois anos depois, o filme repete-se com a criança mais nova. Mas desta vez é ainda pior, uma vez que o número de crianças em creche aumentou por via da gratuitidade. Isso mesmo refere também o comunicado do Governo.

Em entrevista à RTP, o ministro Fernando Alexandre diz que vão ser feitos contratos de associação para resolver este problema. É melhor do que nada, mas tal como acontece com a Creche Feliz, trata-se de mais um penso rápido para a educação na primeirainfância, que o próprio ministro identifica como um dos principais preditores de sucesso futuro.

É importante que se assuma que não existe uma visão integrada daquilo que queremos enquanto sociedade para o desenvolvimento das nossas crianças nos seus primeiros anos de vida. As crianças de três anos, particularmente, estão enfiadas no buraco negro burocrático entre a tutela das creches, que pertence à Segurança Social, e a tutela do pré-escolar, do Ministério da Educação.

Esta é uma idade profundamente sensível, de transição, onde as necessidades de cada criança, mesmo em questões bastante pragmáticas (já para não falar em nuances de desenvolvimento cognitivo), são muito variáveis. Todos os pais que passaram por este processo conhecem a importância de temas como o desfralde e as sestas.Era da maior importância que a passagem da creche para o pré-escolar fosse um processo centrado na criança, assegurando a sua estabilidade, não forçando mudanças de escola ou precipitando a adaptação a contextos para a qual a criança claramente não está preparada. E no entanto são precisamente as crianças nesta idade que caem numa situação de incerteza e falta de opções, na qual nenhum destes aspectos é tido em conta.

Como se explica que assim seja? A meu ver, continuamos a viver à sombra de uma realidade antiga e patriarcal, na qual as mulheres (mães, avós, tias) não estavam inseridas no mercado de trabalho e como tal tinham disponibilidade para cuidar dos mais pequenos. E, já agora, dos idosos e outras pessoas dependentes. Não só tinham disponibilidade, como tinham, social e moralmente, esse encargo. O panorama mudou, o Estado recebe com satisfação os impostos e contribuições de todas estas novas trabalhadoras. A isso chama igualdade — mas sem nunca retribuir com políticas que a cumpram em pleno. Saibamos exigi-lo.